Mais histeria governista e legalista pelo Acordo Ortográfico
Donde saem estes tiranetes?
As figuras tristes
Vital Moreira faz, em artigo no seu blogue pessoal1, as mesmas figuras tristes que Carlos Esperança, essas já denunciadas no meu artigo Argumentos legalistas (e governistas) em favor do Acordo Ortográfico, acrescentando-lhe outras2. Escreve Vital Moreira, com ênfases meus:
Não sendo advogado, não me tinha dado conta de que o Boletim da Ordem dos Advogados informa que «não adopta [sic] o novo Acordo Ortográfico», apesar de este estar em vigor desde 2015, sendo de presumir que a Ordem também o não faz na sua correspondência oficial e nos processos administrativos, disciplinares, judiciais, etc., em que intervém. O site da Ordem insere a mesma rejeição do AO (imagem acima)
Considero uma inadmissível provocação esta recusa da ortografia oficial da República por parte de uma entidade pública, criada pelo Estado e encarregada do desempenho de tarefas públicas de regulação e disciplina da profissão de advogado. Nem sequer pode ser invocado o facto de não haver sanção prevista para o incumprimento da ortografia oficial, sobretudo tratando-se de um organismo público empenhado na observância do Estado de direito, sabendo-se que a ordem jurídica, a começar pela Constituição, inclui outras normas "imperfeitas", desprovidas de sanção, sem que isso torne menos ilícita a sua violação.
Por que desconhecido privilégio se julga a OA acima da lei?
Não se conhecem, por parte dos defensores do Acordo Ortográfico, quaisquer argumentos linguísticos. Em vez disso, encontramos seguidismo dogmático, e fervor autoritário pela decisão do governo do seu partido. Neste caso, a defesa socratista3 é tanta que Vital Moreira chega a indignar-se contra um boletim, e a possibilidade dos advogados escreverem noutra ortografia, mesmo que inteligível, que não aquela que é ditada pelo Estado Novo Ortográfico.
A adenda
Estranhamente, o artigo tem uma adenda, mais uma vez com ênfases meus:
Outro leitor objeta que o AO «não é uma lei», pelo que a crítica não se justificaria. Vê-se logo que não se trata de um jurista, pois, se o fosse, saberia bem que os acordos internacionais vigoram diretamente na ordem interna e criam direitos e obrigações, sem necessidade de transposição legislativa. Mais, de acordo com a interpretação dominante, os acordos internacionais prevalecem sobre lei interna incompatível com eles, assim respeitando o compromisso do Estado com terceiros países. Por isso, o AO nem sequer pode ser validamente afastado por uma lei, o que torna o seu incumprimento ainda mais grave do que se se tratasse de uma lei interna.
Ou seja, um leitor diz-lhe que o AO não é uma lei, e Vital Moreira, que escreveu o seu artigo original a perguntar-se porque se considera a Ordem dos Advogados «acima da lei», diz que obviamente o leitor não é jurista. Não fica bem descartar assim a participação cívica dum cidadão, até porque a democracia não pode ficar entregue aos juristas. No entanto, sendo jurista, Vital Moreira cometeu uma contradição no seu artigo: diz que a OA não pode estar acima da lei, para logo admitir que por acaso até não mas é «mais grave». Mais calinadas foram detectadas pelos Tradutores Contra o Acordo Ortográfico.2
A questão dos tratados internacionais fica para outra oportunidade, o da sua legitimidade democrática. Por exemplo, na Suíça, têm de ser ratificados por referendo. Em Portugal, ninguém quis este acordo ortográfico. Foi ratificado por pressão de José Sócrates4, e só continua graças a uma impressão de obrigatoriedade que é espalhada por um pequeno número de militantes governistas com palavras questionáveis.
1 Vital Moreira, «Era o que faltava! (3): A Ordem dos Advogados acima da lei?!», blogue Causa Nossa, 23 de Junho de 2022; reproduzido no Ciberdúvidas a 24 de Junho de 2022
2 Veja-se contraditório jurídico ao artigo do blogue de Vital Moreira na resposta de Tradutores contra o Acordo Ortográfico no Facebook; leia-se também o livro de Carlos Fernandes, O Acordo Ortográfico de 1990 Não Está em Vigor: Prepotências do Governo de José Sócrates e do Presidente Cavaco Silva, Guerra & Paz, 2016.
3 Ver, por exemplo, Vital Moreira em defesa de Sócrates, Observador, 30 de Março de 2015; Vital Moreira defende Sócrates e chama "desbocado" a Sérgio Moro, Sol, 25 de Abril de 2019.
4 Presidente da Academia das Ciências diz que acordo foi “ato ditatorial” de Sócrates, jornal i, 5 de Maio de 2016; Manuel Maria Carrilho culpa “voluntarismo patológico” de José Sócrates pelo Acordo Ortográfico, Jornal Económico, 15 de Julho de 2019.